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NOS EUA OU AQUI, O GOLPISMO NÃO PODE SER TOLERADO

NOS EUA OU AQUI, O GOLPISMO NÃO PODE SER TOLERADO

No dia em que o Supremo Tribunal Federal começou a julgar se tornará réus cem acusados pelo ataque aos Três Poderes em 8 de janeiro, nos EUA a Fox News levou uma surra noutra corte. Dois anos separam as duas invasões. A de 6 de janeiro, em 2021 ao Capitólio americano, a do dia 8 em 2023, cá no Brasil. Apesar do aparente incômodo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem demonstrado a respeito dos EUA, os dois países vivem crises incrivelmente similares. Observar o que acontece lá, analisar, é fundamental para compreender os caminhos por seguir aqui.

NOS EUA OU AQUI, O GOLPISMO NÃO PODE SER TOLERADO

Pelo menos mil apoiadores do ex-presidente Donald Trump foram presos imediatamente após o ataque ao Capitólio. Destes, 725 se tornaram réus antes do final do ano. No início agora de 2023, já eram 978 réus. Ao todo, já existem 16 condenações a sentenças diversas de prisão — cada processo é, naturalmente, individual.

Mas há uma diferença relevante entre os cem que o Supremo agora julga e os mil e tantos réus americanos. No caso dos EUA, a maioria dos invasores do Capitólio estava já formalmente envolvida em movimentos supremacistas brancos, em grupos paramilitares anti-Estado. Aquelas pessoas carregaram para dentro do Congresso símbolos abertamente separatistas, como é o caso da bandeira Confederada, que representa o naco do país que tentou romper com Washington formando outra nação no período da Guerra Civil. Ao invadir o palácio, gritavam em conjunto “enforque Mike Pence”, o vice-presidente.

A quantidade de desavisados no caso brasileiro é imensa. Gente transportada de ônibus de vários cantos do país, desnorteadas, sem completa compreensão do tamanho do crime que estavam cometendo. Evidentemente que as imagens capturadas nos três palácios brasileiros chocam. Os ataques a obras de arte e símbolos diversos da República, o roubo da réplica da Constituição original, o estilhaço dos vidros. Mas, ao mesmo tempo, no momento da prisão não eram poucos atônitos com a descoberta de que não poderiam voltar para casa, de que a comida na cadeia é ruim, de que usar o celular lhes seria negado.

Não havia alienação entre os golpistas americanos. Entre os brasileiros havia e não era pouca.

Parte da missão da Justiça, por aqui, tem sido essa. A de separar aqueles que estavam na multidão incitando o avanço, que agiram para destruir o que simboliza Brasil, do outro pedaço — a multidão perdida que entrou no redemoinho bolsonarista e perdeu contato com a realidade.

Essa separação é importante não porque sejam inocentes — não são. Mas porque foram usados pelo movimento de extrema direita que atacou a democracia brasileira como bois de piranha. É fundamental que a Justiça se concentre não nestes, mas naqueles que planejaram o ataque.

Por isso mesmo, o caso do processo aberto pela Dominion contra a Fox News é tão importante. A empresa, uma fabricante de urnas eletrônicas, entrou na Justiça pedindo à rede de Rupert Murdoch US$ 1 bilhão em perda de valor da marca mais US$ 600 milhões em lucros perdidos. No período entre o fim da eleição presidencial de 2020 e a invasão do Capitólio, dois meses depois, a Fox atacou agressivamente o processo de votação. No centro dos ataques estavam duas fabricantes de urnas — além da Dominion, a Smartmatic.

Pois é. O dinheiro era o de menos para Murdoch.

A fase pré-julgamento terminou na semana passada e o juiz Eric Davis suspendeu o curso normal do processo por um dia para que os advogados das partes tentassem chegar a um acordo antes de encarar o júri. Chegaram, com o pagamento de US$ 787,5 milhões. Próximo de um bi. O desespero dos advogados da TV para impedirem que o caso fosse a julgamento não é à toa.

Não havia vitória possível para o velho australiano, que controla um bom quinhão da imprensa de direita mais agressiva da língua inglesa, não só nos EUA como também em seu país natal e no Reino Unido. Na fase anterior ao júri, depoimentos e provas foram colhidas. O próprio Murdoch testemunhou, reconhecendo que tinha plena consciência de que os ataques à eleição eram infundados. Mensagens do principal âncora-comentarista da emissora, Tucker Carlson, também foram tornadas públicas. Carlson demonstra completo desprezo por Trump e escreve ao filho que a emissora deveria ter declarado Joe Biden vencedor. No ar, porém, ele estava dizendo exatamente o contrário.

O montante de provas era tanto que o juiz declarou, de antemão, que a Fox não poderia se defender atacando a eleição. Que a eleição era válida e muita gente na TV sabia, estava claro. A questão que deveria ser julgada até o veredito final é se o erro ao atacar o pleito foi de má-fé ou não. Isto quer dizer que Carlson e as outras duas estrelas do canal, Laura Ingraham e Sean Hannity, teriam de sentar na cadeira de testemunhas e dizer sob juramento se acreditavam ou não no que diziam ao gritar fraude.

Caso mentissem e provas viessem a público do oposto — seria o caso de Carlson —, estariam sujeitos à prisão.

É disto que a Fox News se livrou ao topar pagar quase US$ 1 bilhão para evitar o processo. Ver suas estrelas confessando que mentiram ao público. O risco, porém, ainda não foi embora. O caso da outra companhia é pior. A Smartmatic quer US$ 2,7 bilhões e um juiz de Nova York já considerou que o pedido faz sentido perante o tamanho da injúria.

A Fox News tampouco é a única que Dominion e Smartmatic estão processando. Entram na lista também canais de TV menores do que a Fox e influenciadores pesos pesados. Um dos caminhos que os americanos estão tomando para salvar sua democracia é este. Provar que a campanha para desacreditar o processo eleitoral, mesmo quando tocada por peixes graúdos, foi proposital e, portanto, criminosa. Ontem à noite, tanto Hannity quanto Carlson fizeram seus programas sem citar o processo e o acordo judicial. Ficaram livres da exposição.

Ainda não dá para dizer por quanto tempo.

E há, claro, o próprio Donald Trump. Ele já é réu em um caso com pouca probabilidade de ir longe. Mas dois outros casos podem ser bem mais complexos. Um envolve a ocultação de documentos sigilosos em sua residência e o outro questiona se ele conscientemente insuflou o ataque ao Capitólio. Um terceiro processo, ainda em fase de investigação, pode levar à acusação de tentar falsificar votos no estado da Geórgia.

Estes processos estarão em curso quando Trump estiver entrando na corrida eleitoral para disputar a presidência, no ano que vem. Ainda não é claro se o ajudarão ou se vão atrapalhar.

Os EUA nunca processaram ex-presidentes. Aquela é uma democracia trabalhando de forma descentralizada contra o movimento golpista que nasceu em seu interior.

Seguindo os passos americanos, o Brasil tem, portanto, duas missões pela frente. Uma é levar à Justiça o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus principais assessores por incitar um ataque à democracia e disseminar a descrença no processo eleitoral. A outra não está clara se faremos: investigar para descobrir que influenciadores e empresas jornalísticas, cientes de que o processo eleitoral era limpo, atacaram-no ainda assim.

É muito, muito delicado questionar assim a atuação do jornalismo. Mas golpismo não pode ser tolerado no Brasil do século 21.

Por Pedro Doria

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